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domingo, 12 de outubro de 2014

Divulgação - Excerto de "Espada que Sangra"

PREÂMBULO

Num tempo remoto, imemorial, nasceu um mundo nu e cru, a que chamaram de Zallar.

Todos os relatos sobre a Zallar primordial foram-se adulterando com o suceder de milénios e milénios onde povos desiguais traçaram as suas próprias culturas e crenças, mas num olhar amplo, a tónica da conceção deste mundo sempre esteve ideologicamente assente na aparição de uma figura omnipotente. Numa era antiquíssima em que tudo o que existia era um imenso oceano, surgiu um ser singular, dotado de um poder alienígena desmesuradamente superior às forças dos seres unicelulares que com ele coabitavam. Este inexorável organismo era tão poderoso, que da sua fúria eclodiu uma imensa explosão marinha, revolucionando o sistema tectónico do planeta. Essa transformação resultou na formação da terra. 

Exilando-se do seu domínio náutico, esse ser ufano subiu a solo firme, e como mestre esboçou o plano do que viria a ser a sua magnânime obra de arte. Em três mil anos edificou espinhosas montanhas, pelo seu mundo distribuiu mares fundos e escuros, córregos límpidos como cristal, opulentas florestas de um verde vivo, desertos áridos e pântanos fétidos de fungos; desenvolveu o fogo, o ar, a água e o metal e juntou-lhe uma complexa gama de plantas e de animais. A esse organismo criador chamaremos O Ente, embora muitos tenham sido os nomes que lhe foram atribuídos pelos humanos, deturpando-se de zona para zona e modificando-se com o passar dos tempos. 

No equilibrado conjunto que criara, houve uma espécie de animal que reclamou a supremacia: uma ave de rapina gigantesca, de penas brancas, com um bico belíssimo do qual brotavam severas rajadas de fogo: jorros da cor do ouro e do sangue, acompanhados por nefastas nuvens de fumo e de enxofre. Hasteava o seu longo e arqueado pescoço com graciosidade, dobrava-o vaidosamente para a frente e para trás e usava-se do seu fogo essencialmente para a sua própria sobrevivência, queimando animais menores na cada vez mais complexa cadeia alimentar. As dúvidas sobre a existência dessa mítica ave fizeram os humanos chamá-lo de nebuloso, e a beleza com que relatos antigos e imensas pinturas o reproduziam, intitularam-no de feérico. Ainda O Ente não terminara a sua obra, já os nebulosos feéricos imperavam nesse mundo sem fim. 

Ao perceber que a sua obra florescia naturalmente e sem a sua influência, o ser criador decidiu que nada mais ali havia a fazer e encontrou um novo caminho: rumou aos céus, deixando o seu mundo ao cuidado de deuses menores – muitas crenças salientaram que esses deuses seriam múltiplas faces do próprio Ente; outras garantiam que os deuses seriam os seus filhos. 

O dealbar do homem – não como o conhecemos hoje, não como o imaginamos quando ouvimos a palavra “homem” – ocorreu aproximadamente dez mil anos após a Criação de Zallar. Eram os nebulosos feéricos os donos e senhores do mundo quando eles se revelaram. A maioria das narrações indicam que, percebendo as potencialidades alimentares da terra, pequenos anfíbios e répteis haviam galgado as margens, abandonando o patrono dos mares, enquanto as aves teriam deixado o seu senhor dos céus, buscando subsistência na terra. Os deuses decidiram castigar esses mesmos animais por aquilo que consideravam alta traição e explícita violação dos seus dogmas, e o resultado de um presumível concílio divino abalou as próprias fundações de Zallar. Unindo os seus esforços, os deuses fizeram uma grande tempestade de cem anos se abater sobre Zallar. Oriundo da força singular do relâmpago, emergiu uma nova criatura: exibia um corpo reto, uma cabeça, um tronco, dois braços e duas pernas. Diz-se que todos os animais que abandonaram os seus patronos foram destruídos, e parte dos seus traços físicos foi agregada a esta nova e sublime espécie. 

Os Homens Demónio foram a primeira raça de homens. Eram criaturas andróginas, de seios oblongos e sexos viris, com uma cabeça sem orelhas, narinas muito dilatadas e pares de olhos grandes e facetados. Possuíam línguas viperinas, caudas e dentes de réptil e os seus rostos assemelhavam-se a lagartos, embora a sua pele fosse completamente coberta por penas de muitas e variadas cores. Os seus pés eram robustos e adequados para a corrida, muito semelhantes às velozes patas de uma avestruz, distinguindo-se destas pelos quatro dedos que se moldavam em cada pata, unidos por finas membranas flexíveis de aparência viscosa. Por sua vez, os braços dos Homens Demónio eram compridos e cobertos de penas, embora as suas mãos de cinco dedos com unhas fossem próprias de um primata: maleáveis de dobrar e capazes de pegar em objetos. Estes hominídeos não tinham asas para voar, nem capacidade para sobreviver sob a água, pois o pecado de que resultara a sua criação impedia-os de regressarem aos domínios antigos. A forma como estes seres se reproduziam numa fase inicial da sua existência tornou-se um intricado mistério para o humano, um mistério que pode encontrar resposta através da análise detalhada aos mais antigos registos fósseis desta espécie. Algumas versões apostam numa espécie de membrana sexual feminina junto ao sexo varonil do Homem Demónio, o que implicava uma espécie de útero no seu íntimo – o Homem Demónio primordial seria hermafrodita; outras versões, mais consistentes e também mais contestadas, apontavam-no como ovíparo, reproduzindo enormes ovos pela boca. Pinturas rupestres apontam ritos de acasalamento inóspitos, com cânticos, sangramentos e cópulas grupais. Numa época posterior, a natureza desagregou o seu único género, dividindo-os em masculino e feminino. Viveram séculos difíceis, procurando climas favoráveis à sua natureza, mas as contrariedades com que se depararam obrigaram-nos a evoluir, abundando e sofisticando-se na natureza de uma forma exponencial.
Com as suas mãos, os homens aprenderam a fazer fogo. Pegaram em pedras e conceberam as suas casas; nos seus instrumentos rudimentares, e criaram a agricultura; nos seus animais, e inventaram a pastorícia. Usavam-se dos recursos mais básicos para gerar magia – o controlo daquilo que os rodeava. Nesse processo evolutivo, conseguiram um feito imprevisível, que se diz, surpreendeu os próprios deuses. Aprenderam a montar a excelsa raça dos nebulosos feéricos, tornando-os seu transporte, seu tesouro e sua arma. As aves sentiam-se honradas. Os homens sentiam-se triunfantes. Urros de contentamento guturais retratavam a glória que um hominídeo tão primitivo alcançava ao dominar ser tão sublime. O passar das décadas, dos séculos, desvalorizou o gesto, e os nebulosos feéricos foram, gradualmente, perdendo a sua hegemonia. O uso da ave passou a ser um mero – mas importantíssimo – meio de transporte. Como se isso não fosse suficientemente mau, a fome despertou os ímpetos destrutivos dos Homens Demónio. Colónias de abelhas tornaram-se indisciplinadas e agressivas, e o seu mel deixou de ser produzido em quantidades suficientes para alimentar aqueles povos. Culturas de grão pareciam escassear, o mesmo com as plantações de uma espécie de trigo chamado kusfhfur. Quando outras raças de ovíparos e até mesmo de pequenos mamíferos que até ali haviam alimentado os homens se começaram a extinguir, a fome obrigou-os também a caçar os nebulosos feéricos. Deixaram de ser as suas montadas, para se tornarem as suas presas. Em tempos idos, os nebulosos feéricos teriam mostrado resistência, travado uma guerra contra os homens e provavelmente os teriam queimado a todos, mas os homens os haviam adocicado, as aves tinham também evoluído e perdido alguma da sua fúria antiga; e a espécie um dia soberana foi, subtilmente, desaparecendo da face de Zallar. Os nebulosos feéricos extinguiram-se, transformando-se em lenda, e com eles, terminou a Primeira Era do mundo.

Os primeiros tempos da nova economia consistiram na construção das primeiras vilas e cidades. Nelas surgiu a estratificação dos homens em classes sociais e, mais tarde, a conceção do trabalho especializado. O esqueleto do mundo civilizado emergiu de uma densa sequência de obras complexas assentes num profundo conhecimento do cálculo e do nivelamento de terras, das estações do ano e das suas culturas de cultivo. Elaboradas redes de drenagem e sistema de águas, o molde do barro e o trabalho do ferro, assim como o próprio desenvolvimento do seu léxico contribuiram em muito para um incrível crescimento demográfico no centro de Zallar. Na peugada das famigeradas condições de vida que estas sociedades agropastoris ofereciam, povos meridionais confluiram para o centro do mundo, onde os climas temperados já haviam chamado outras tribos e clãs. Tal expansão provocou um choque de culturas que muitas vezes resultou em guerras, mas esse choque promoveu um maior aperfeiçoamento dos seus materiais, utensílios e técnicas. Os Homens Demónio tornaram-se donos e senhores de Zallar.

Os tempos voaram e surgiram outras espécies de hominídeos, sem qualquer vestígio anfíbio, réptil ou aviário na sua fisionomia. Os novos homens – que chamaremos, estes sim, de humanos – cruzaram o oeste, apoderaram-se de terras e viveram as mesmas dificuldades de progresso que os demónios haviam experimentado. Quando se deu o primeiro impacto entre os humanos e os dominantes Homens Demónio, os sentimentos não foram de afeição. Estes já haviam erguido os seus domínios, construído reinos e alcançado uma sofisticação mental notável, muito superior à dos novos homens, e não estavam dispostos a partilhar o que demoraram tanto a construir. Mas os recém-chegados não se subordinaram. Aparentemente, os novos homens evoluíam bem mais rapidamente que os seus parentes, e habilidosas empresas territoriais mostraram o que seriam eles capazes de fazer para reclamar aqueles domínios. Evitando enfrentar os bem armados Homens Demónio em guerras abertas, os humanos montavam ardis estratégicos para se internarem nos muros dos seus inimigos, e quando alcançavam o âmago dos territórios, os líderes demónios sabiam que tinham a sua cabeça em risco e as suas propriedades perdidas. 

Tal afronta incutiu nos demónios um instinto de vingança ainda mais acirrado do que alguma vez haviam demonstrado, mas apesar de tudo, eram tão ou mais inteligentes que os novos homens, e os Reis-Demónio uniram-se para o provar. Obstinados na preservação do seu domínio, recorreram a forças mágicas e fizeram despertar as gigantescas serpentes vermelhas dos desertos, que atacaram as povoações primitivas dos humanos. Tais bestas provocaram centenas de vítimas mortais, inflamando nos sobreviventes o seu fogo interior. 

O fogo da guerra. 

Homens Demónio colocaram de pé novas muralhas, mas as linhas do poder estavam seriamente corroídas. Gourjulea – cerne do mundo –, o centro nevrálgico do seu império, talhado com os emblemas da sua sabedoria, tornou-se o grande alvo dos novos homens. As duas espécies digladiaram-se e muitas raças humanas desapareceram, figurando na História pontualmente, deixando não mais que ténues memórias para os principais povos humanos.
Castelos foram erguidos, armas e armaduras foram forjadas, e os humanos abandonaram os seus modos de vida recoletores, fixando-se em pontos-chave estratégicos para defenderem os seus domínios. Lâminas embateram ruidosamente e o solo foi pintalgado de sangue. 

A envolvência de séculos em guerra fez humanos e demónios acabarem por se conhecer mutuamente. Os novos homens começaram a assimilar a cultura dos Homens Demónio, e se fascinaram com as lendas sobre nebulosos feéricos e sobre a génese do mundo, criando as suas próprias versões da História e dos Deuses. A conquista de todo o território pelos humanos marcou o início da Terceira Era. O resultado de todos esses despiques territoriais foi a vitória do ser com maior capacidade de adaptação – o ser humano –, e os impiedosos Homens Demónio, outrora senhores de Zallar e empreendedores dos primeiros castelos e cidades, tornaram-se apenas uma sombra do que um dia foram. Reduzidos a comunidades errantes, nómadas e selvagens, os seus descendentes de penas negras, designados mahlan, começaram a alimentar-se de carne humana, e a espécie regrediu imenso a nível intelectual, afastando-se para os desertos. Já os humanos, herdando os amplos conhecimentos dos antigos Homens Demónio, descentralizaram o seu poder, dividindo-se em grandes cidades-estado, a que chamaram de espadas.

8 comentários:

  1. Ois miga,

    Epá só tenho a dizer uma coisa, isto é história, o melhor vem a seguir ;)

    bjs ;)

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  2. Obrigado pela divulgação, Sofia. Espero superar as vossas expectativas xD

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    1. De nada, Nuno.

      Pelo que o Fiacha tem dito, de certeza que não me vou desiludir :)

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    2. Olha como eu adivinhei ehehe, não te vais desiludir não senhor, boa fantasia vais encontrar ;)

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  3. Obrigado pela divulgação, Sofia :) Espero superar as vossas expectativas. xD

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