PREÂMBULO
Num tempo remoto, imemorial, nasceu um mundo nu e cru, a que chamaram de Zallar.
Todos os relatos sobre a Zallar primordial
foram-se adulterando com o suceder de milénios e milénios onde povos
desiguais traçaram as suas próprias culturas e crenças, mas num olhar
amplo, a tónica da conceção deste mundo sempre esteve ideologicamente
assente na aparição de uma figura omnipotente. Numa era antiquíssima em
que tudo o que existia era um imenso oceano, surgiu um ser singular,
dotado de um poder alienígena desmesuradamente superior às forças dos
seres unicelulares que com ele coabitavam. Este inexorável organismo era
tão poderoso, que da sua fúria eclodiu uma imensa explosão marinha,
revolucionando o sistema tectónico do planeta. Essa transformação
resultou na formação da terra.
Exilando-se do seu domínio náutico, esse ser ufano
subiu a solo firme, e como mestre esboçou o plano do que viria a ser a
sua magnânime obra de arte. Em três mil anos edificou espinhosas
montanhas, pelo seu mundo distribuiu mares fundos e escuros, córregos
límpidos como cristal, opulentas florestas de um verde vivo, desertos
áridos e pântanos fétidos de fungos; desenvolveu o fogo, o ar, a água e o
metal e juntou-lhe uma complexa gama de plantas e de animais. A esse
organismo criador chamaremos O Ente, embora muitos tenham sido os nomes
que lhe foram atribuídos pelos humanos, deturpando-se de zona para zona e
modificando-se com o passar dos tempos.
No equilibrado conjunto que criara, houve uma
espécie de animal que reclamou a supremacia: uma ave de rapina
gigantesca, de penas brancas, com um bico belíssimo do qual brotavam
severas rajadas de fogo: jorros da cor do ouro e do sangue, acompanhados
por nefastas nuvens de fumo e de enxofre. Hasteava o seu longo e
arqueado pescoço com graciosidade, dobrava-o vaidosamente para a frente e
para trás e usava-se do seu fogo essencialmente para a sua própria
sobrevivência, queimando animais menores na cada vez mais complexa
cadeia alimentar. As dúvidas sobre a existência dessa mítica ave fizeram
os humanos chamá-lo de nebuloso, e a beleza com que relatos antigos e
imensas pinturas o reproduziam, intitularam-no de feérico. Ainda O Ente
não terminara a sua obra, já os nebulosos feéricos imperavam nesse mundo
sem fim.
Ao perceber que a sua obra florescia naturalmente e
sem a sua influência, o ser criador decidiu que nada mais ali havia a
fazer e encontrou um novo caminho: rumou aos céus, deixando o seu mundo
ao cuidado de deuses menores – muitas crenças salientaram que esses
deuses seriam múltiplas faces do próprio Ente; outras garantiam que os
deuses seriam os seus filhos.
O dealbar do homem – não como o conhecemos hoje,
não como o imaginamos quando ouvimos a palavra “homem” – ocorreu
aproximadamente dez mil anos após a Criação de Zallar. Eram os nebulosos
feéricos os donos e senhores do mundo quando eles se revelaram. A
maioria das narrações indicam que, percebendo as potencialidades
alimentares da terra, pequenos anfíbios e répteis haviam galgado as
margens, abandonando o patrono dos mares, enquanto as aves teriam
deixado o seu senhor dos céus, buscando subsistência na terra. Os deuses
decidiram castigar esses mesmos animais por aquilo que consideravam
alta traição e explícita violação dos seus dogmas, e o resultado de um
presumível concílio divino abalou as próprias fundações de Zallar.
Unindo os seus esforços, os deuses fizeram uma grande tempestade de cem
anos se abater sobre Zallar. Oriundo da força singular do relâmpago,
emergiu uma nova criatura: exibia um corpo reto, uma cabeça, um tronco,
dois braços e duas pernas. Diz-se que todos os animais que abandonaram
os seus patronos foram destruídos, e parte dos seus traços físicos foi
agregada a esta nova e sublime espécie.
Os Homens Demónio foram a primeira raça de homens.
Eram criaturas andróginas, de seios oblongos e sexos viris, com uma
cabeça sem orelhas, narinas muito dilatadas e pares de olhos grandes e
facetados. Possuíam línguas viperinas, caudas e dentes de réptil e os
seus rostos assemelhavam-se a lagartos, embora a sua pele fosse
completamente coberta por penas de muitas e variadas cores. Os seus pés
eram robustos e adequados para a corrida, muito semelhantes às velozes
patas de uma avestruz, distinguindo-se destas pelos quatro dedos que se
moldavam em cada pata, unidos por finas membranas flexíveis de aparência
viscosa. Por sua vez, os braços dos Homens Demónio eram compridos e
cobertos de penas, embora as suas mãos de cinco dedos com unhas fossem
próprias de um primata: maleáveis de dobrar e capazes de pegar em
objetos. Estes hominídeos não tinham asas para voar, nem capacidade para
sobreviver sob a água, pois o pecado de que resultara a sua criação
impedia-os de regressarem aos domínios antigos. A forma como estes seres
se reproduziam numa fase inicial da sua existência tornou-se um
intricado mistério para o humano, um mistério que pode encontrar
resposta através da análise detalhada aos mais antigos registos fósseis
desta espécie. Algumas versões apostam numa espécie de membrana sexual
feminina junto ao sexo varonil do Homem Demónio, o que implicava uma
espécie de útero no seu íntimo – o Homem Demónio primordial seria
hermafrodita; outras versões, mais consistentes e também mais
contestadas, apontavam-no como ovíparo, reproduzindo enormes ovos pela
boca. Pinturas rupestres apontam ritos de acasalamento inóspitos, com
cânticos, sangramentos e cópulas grupais. Numa época posterior, a
natureza desagregou o seu único género, dividindo-os em masculino e
feminino. Viveram séculos difíceis, procurando climas favoráveis à sua
natureza, mas as contrariedades com que se depararam obrigaram-nos a
evoluir, abundando e sofisticando-se na natureza de uma forma
exponencial.
Com as suas mãos, os homens aprenderam a fazer
fogo. Pegaram em pedras e conceberam as suas casas; nos seus
instrumentos rudimentares, e criaram a agricultura; nos seus animais, e
inventaram a pastorícia. Usavam-se dos recursos mais básicos para gerar
magia – o controlo daquilo que os rodeava. Nesse processo evolutivo,
conseguiram um feito imprevisível, que se diz, surpreendeu os próprios
deuses. Aprenderam a montar a excelsa raça dos nebulosos feéricos,
tornando-os seu transporte, seu tesouro e sua arma. As aves sentiam-se
honradas. Os homens sentiam-se triunfantes. Urros de contentamento
guturais retratavam a glória que um hominídeo tão primitivo alcançava ao
dominar ser tão sublime. O passar das décadas, dos séculos,
desvalorizou o gesto, e os nebulosos feéricos foram, gradualmente,
perdendo a sua hegemonia. O uso da ave passou a ser um mero – mas
importantíssimo – meio de transporte. Como se isso não
fosse suficientemente mau, a fome despertou os ímpetos destrutivos dos
Homens Demónio. Colónias de abelhas tornaram-se indisciplinadas e
agressivas, e o seu mel deixou de ser produzido em quantidades
suficientes para alimentar aqueles povos. Culturas de grão pareciam
escassear, o mesmo com as plantações de uma espécie de trigo chamado kusfhfur.
Quando outras raças de ovíparos e até mesmo de pequenos mamíferos que
até ali haviam alimentado os homens se começaram a extinguir, a fome
obrigou-os também a caçar os nebulosos feéricos. Deixaram de ser as suas
montadas, para se tornarem as suas presas. Em tempos idos, os nebulosos
feéricos teriam mostrado resistência, travado uma guerra contra os
homens e provavelmente os teriam queimado a todos, mas os homens os
haviam adocicado, as aves tinham também evoluído e perdido alguma da sua
fúria antiga; e a espécie um dia soberana foi, subtilmente,
desaparecendo da face de Zallar. Os nebulosos feéricos extinguiram-se,
transformando-se em lenda, e com eles, terminou a Primeira Era do mundo.
Os primeiros tempos da nova economia consistiram
na construção das primeiras vilas e cidades. Nelas surgiu a
estratificação dos homens em classes sociais e, mais tarde, a conceção
do trabalho especializado. O esqueleto do mundo civilizado emergiu de
uma densa sequência de obras complexas assentes num profundo
conhecimento do cálculo e do nivelamento de terras, das estações do ano e
das suas culturas de cultivo. Elaboradas redes de drenagem e sistema de
águas, o molde do barro e o trabalho do ferro, assim como o próprio
desenvolvimento do seu léxico contribuiram em muito para um incrível
crescimento demográfico no centro de Zallar. Na peugada das famigeradas
condições de vida que estas sociedades agropastoris ofereciam, povos
meridionais confluiram para o centro do mundo, onde os climas temperados
já haviam chamado outras tribos e clãs. Tal expansão provocou um choque
de culturas que muitas vezes resultou em guerras, mas esse choque
promoveu um maior aperfeiçoamento dos seus materiais, utensílios e
técnicas. Os Homens Demónio tornaram-se donos e senhores de Zallar.
Os tempos voaram e surgiram outras espécies de
hominídeos, sem qualquer vestígio anfíbio, réptil ou aviário na sua
fisionomia. Os novos homens – que chamaremos, estes sim, de humanos –
cruzaram o oeste, apoderaram-se de terras e viveram as mesmas
dificuldades de progresso que os demónios haviam experimentado. Quando
se deu o primeiro impacto entre os humanos e os dominantes Homens
Demónio, os sentimentos não foram de afeição. Estes já haviam erguido os
seus domínios, construído reinos e alcançado uma sofisticação mental
notável, muito superior à dos novos homens, e não estavam dispostos a
partilhar o que demoraram tanto a construir. Mas os recém-chegados não
se subordinaram. Aparentemente, os novos homens evoluíam bem mais
rapidamente que os seus parentes, e habilidosas empresas territoriais
mostraram o que seriam eles capazes de fazer para reclamar aqueles
domínios. Evitando enfrentar os bem armados Homens Demónio em guerras
abertas, os humanos montavam ardis estratégicos para se internarem nos
muros dos seus inimigos, e quando alcançavam o âmago dos territórios, os
líderes demónios sabiam que tinham a sua cabeça em risco e as suas
propriedades perdidas.
Tal afronta incutiu nos demónios um instinto de
vingança ainda mais acirrado do que alguma vez haviam demonstrado, mas
apesar de tudo, eram tão ou mais inteligentes que os novos homens, e os
Reis-Demónio uniram-se para o provar. Obstinados na preservação do seu
domínio, recorreram a forças mágicas e fizeram despertar as gigantescas
serpentes vermelhas dos desertos, que atacaram as povoações primitivas
dos humanos. Tais bestas provocaram centenas de vítimas mortais,
inflamando nos sobreviventes o seu fogo interior.
O fogo da guerra.
Homens Demónio colocaram de pé novas muralhas, mas
as linhas do poder estavam seriamente corroídas. Gourjulea – cerne do
mundo –, o centro nevrálgico do seu império, talhado com os emblemas da
sua sabedoria, tornou-se o grande alvo dos novos homens. As duas
espécies digladiaram-se e muitas raças humanas desapareceram, figurando
na História pontualmente, deixando não mais que ténues memórias para os
principais povos humanos.
Castelos foram erguidos, armas e armaduras foram
forjadas, e os humanos abandonaram os seus modos de vida recoletores,
fixando-se em pontos-chave estratégicos para defenderem os seus
domínios. Lâminas embateram ruidosamente e o solo foi pintalgado de
sangue.
A envolvência de séculos em guerra fez humanos e
demónios acabarem por se conhecer mutuamente. Os novos homens começaram a
assimilar a cultura dos Homens Demónio, e se fascinaram com as lendas
sobre nebulosos feéricos e sobre a génese do mundo, criando as suas
próprias versões da História e dos Deuses. A conquista de todo o
território pelos humanos marcou o início da Terceira Era. O resultado de
todos esses despiques territoriais foi a vitória do ser com maior
capacidade de adaptação – o ser humano –, e os impiedosos Homens
Demónio, outrora senhores de Zallar e empreendedores dos primeiros
castelos e cidades, tornaram-se apenas uma sombra do que um dia foram.
Reduzidos a comunidades errantes, nómadas e selvagens, os seus
descendentes de penas negras, designados mahlan, começaram a
alimentar-se de carne humana, e a espécie regrediu imenso a nível
intelectual, afastando-se para os desertos. Já os humanos, herdando os
amplos conhecimentos dos antigos Homens Demónio, descentralizaram o seu
poder, dividindo-se em grandes cidades-estado, a que chamaram de
espadas.
Ois miga,
ResponderEliminarEpá só tenho a dizer uma coisa, isto é história, o melhor vem a seguir ;)
bjs ;)
Eu estou ansiosa para que o meu cá chegue...
EliminarSei que sim e espero que tenhas o prazer de ver o Nuno aqui a comentar ;)
EliminarVamos ver :)
EliminarObrigado pela divulgação, Sofia. Espero superar as vossas expectativas xD
ResponderEliminarDe nada, Nuno.
EliminarPelo que o Fiacha tem dito, de certeza que não me vou desiludir :)
Olha como eu adivinhei ehehe, não te vais desiludir não senhor, boa fantasia vais encontrar ;)
EliminarObrigado pela divulgação, Sofia :) Espero superar as vossas expectativas. xD
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